“Toda a minha vida esbarra no Saúde e Alegria de alguma forma” – Elis Lucien

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Elis Lucien Rodrigues Barbosa nunca gostou de pintar o rosto com a caracterização clássica dos palhaços. Nascida em uma família circense, ela passou a infância viajando por municípios e comunidades no oeste do Pará, acompanhando o circo de sua mãe, a poetisa e dramaturga Dona Sarita, onde seu pai, o famoso Palhaço Pimentinha, atuava.

Mas Elis sempre foi assistente do pai e dos irmãos, atuando na função de contracenar com os palhaços. Bailarina e trapezista, “como toda menina que nasce no circo”, Elis pingou de porto em porto, estudando nas escolas próximas à tenda. “Só parei em Santarém quando tinha uns sete anos para frequentar a escola”, explica.

Foi somente quando começou a trabalhar no Projeto Saúde e Alegria (PSA), há 17 anos, que a faceta palhaça de Elis veio à tona. Na época, ela atuava na rádio amadora do projeto. Um dia, conta, receberam uma encomenda na recepção do PSA, endereçada para “uma tal de Dona Câmbia”. “Dona Câmbia?”, todos questionaram. Não tinha ninguém com esse nome.

Caracterização da Dona Câmbia é sempre motivo de alegria da criançada. Foto: Priscila Taoajowara.

Foi então que o chefe de Elis entendeu tudo e levou o pacote e sua entregadora até a rádio, durante uma chamada ao vivo. “Prossiga, prossiga, câmbio”, dizia Elis no momento. A moça que levava a encomenda gritou, animada: “É ela! Eu e minha mãe escutamos ela no rádio!”. Foi uma risadaria geral e a partir disso, nascia a mais nova palhaça do Saúde e Alegria: Dona Câmbia. Desde então e ainda hoje, aos 47 anos, Elis pinta as sobrancelhas com cores diferentes, veste saias de tule e suspensórios e transforma informação em diversão para crianças e adultos.

Em uma época não muito distante em que a saúde era menos acessível para as comunidades do baixo Tapajós, Elis embarcava no Abaré, barco hospital do PSA, e auxiliava os profissionais da área.”A gente falava muito sobre a questão da diarreia, da micose de pele. A palhaça era sempre quem estava com micose, com piolho. Aí vinha alguém e falava que eu tinha que lavar bem o cabelo com água e sabão, passar o pente”, lembra. Elis então pegava um pente gigantesco de brinquedo e todo mundo caía na gargalhada. “Ou tirava aquelas cobrinhas do teatro fingindo ser bicho de pé. Aí as mães pensavam ‘hm é mesmo, tenho que botar sandália nas crianças'”.

Para a arte-educadora, trabalhar a conscientização fora do banco escolar é uma forma de suprir as defasagens e falta de acesso à educação formal, trabalhando em paralelo às escolas. “Uma educação transversal, emancipadora e transformadora”, resume. “Principalmente na região norte e nordeste ainda existem muitas pessoas analfabetas, que só desenham o próprio nome”, lamenta.

Elis é técnica em gestão ambiental e especializada em educação ambiental. Também cursou técnico em enfermagem, mas não chegou a se formar. Desde que começou a trabalhar no Saúde e Alegria, cursou uma série de formações nas mais diversas áreas, desde uma oficina de arte com os Doutores da Alegria até cursos de empreendedorismo social. Por conta dessa formação múltipla e do histórico de sua família, o PSA sempre esteve presente na sua trajetória.

“Toda a minha vida, por incrível que pareça, se esbarra no PSA de alguma forma”, destaca. Logo que o projeto chegou a Santarém, há 34 anos, seus fundadores fizeram um anúncio na Rádio Rural do município, procurando artistas e palhaços para trabalharem em conjunto com a proposta da organização. Só apareceu a família de Elis. “A gente seguiu para rádio onde eles estavam esperando os artistas. Meu pai chegou a viajar algumas vezes com o PSA e desde então minha família está inserida no projeto. É muita saúde e muita alegria”.

A família de Elis ajudou a moldar a pedagogia do projeto, mesclando os saberes circenses com os da arte-educação e educomunicação. Hoje a Dona Câmbia surge nas apresentações do Grã Circo Mocorongo ou das noites culturais, quando as famílias das comunidades também participam do teatro, encenando ou fazendo paródias a partir das questões ensinadas nas oficinas organizadas pelo PSA. “Elas têm que trazer um resultado do que entenderam do curso. Os pais vêm para a formação e trazem as crianças, aí a noite fazemos as apresentações para todos, reiterando o aprendizado com um método mais lúdico”, explica.

Palhaça dona Câmbia em atividade no Centro Experimental Floresta Ativa. Foto: Priscila Taoajowara.

“Aiai, vou fazer uma fogueirinha aqui pra acampar nessa floresta”, começa Dona Câmbia para uma plateia de dezenas de crianças em um evento no Centro Experimental Floresta Ativa (CEFA), localizado na Reserva Extrativista Tapajós Arapiuns (RESEX). “Não, não, aqui não pode, vai pegar fogo na floresta!”, responde o clown que contracena com ela, na pausa entre a entrevista para esta campanha.

A temática socioambiental também está desde o início no cerne do trabalho de Elis. Ela participou da assistência técnica em uma extensão rural do projeto, no qual passou um ano e meio trabalhando com a implementação de Sistemas Agroflorestais (SAFs) em quintais de famílias das comunidades ribeirinhas das áreas de atuação do PSA. “Valorizamos a cultura do caju, do côco, fazendo uma revitalização dos próprios quintais. Agora eles já têm um processo agroecológico bem robusto”, conta.

Essas foram somente algumas das áreas que Elis trabalhou ao longo dos seus anos no PSA. Ela já passou dois anos embarcada no Abaré, auxiliando na aplicação de vacinas, já trabalhou com a edição de jornais comunitários, como professora para o ensino das bases do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) e como mentora do Beiradão de Oportunidades, projeto de empreendedorismo voltado para a juventude das comunidades. “Eu sou como se fosse um coringa do PSA”, revela a palhaça.

Segundo Elis, os aprendizados que coleciona com o projeto se devem em grande parte às famílias comunitárias. “Aprendi a respeitar crenças, religião, coisas básicas que lá na cidade a gente não está nem aí. Prosear com as pessoas, o que no dia a dia a gente não percebe porque estamos tão embebidos pelos conceitos urbanos”.

Embora tenha nascido itinerante, foi com o trabalho no PSA que Elis considera que de fato conheceu os territórios da região de Santarém. Até hoje, no entanto, sua família circense é chamada para festas de aniversário das crianças da cidade. “Toda a cidade conhece meu pai das festinhas de antigamente. E ainda hoje quando o encontram falam: “ô, seu Zé, é aniversário do meu neto, vai lá com a sua trupe”, e a gente se reveza nos shows.

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Eu sou Saúde e Alegria traz histórias de pessoas que lutam pela cidadania e pela floresta em pé em comunidades da Amazônia paraense. Uma campanha em comemoração aos 35 anos do PSA.

Reportagem: Júlia Dolce | Vídeo: Priscila Tapajowara
Trilha sonora: Cristina Caetano
Coordenação editorial: Priscila Cotta e Samela Bonfim
Coordenação geral: Fabio Pena

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