Por Patrícia Kalil em O Boto
Transcrição livre das falas de Ernst Götsch durante sua passagem por Santarém, para aulas, oficinas e seminário ao lado do cientista Antonio Nobre*.
Nós, autodenominados homo sapiens, não conseguimos fazer o que as florestas fazem e estamos nos comportando como destruidores ignorantes.
Em primeiro lugar sou produtor rural, faço isso apaixonadamente. Trabalho com as plantas, todas as horas que posso. Sou pesquisador, no sentido que estou sempre questionando. Meu trabalho anterior como geneticista me levou a questionar o que estava (está) sendo feito: uma tentativa suicida de modificar o sistema natural que é muito mais inteligente que a gente. Nós somos parte de um macroorganismo inteligente que tem um sistema imunológico.
O ser humano é a única espécie que conheço que durante 12 mil anos, tentativa após tentativa, vem repetindo os mesmos erros afastando-se da floresta, destruindo ecossistemas naturais e esgotando recursos. Depois, sofre as consequências. Já vimos isso no colapso de algumas civilizações. O resultado do esgotamento de recursos está na escassez, na criação de conflitos que levam para guerra, que levam para a falência e para morte. Começando primeiro localmente, depois em regiões inteiras, continentes e agora estamos vendo isso em escala global.
Na natureza, várias espécies convivem juntas e cumprem funções diferentes.
A vida na natureza desconhece concorrência e competição. A natureza e a agricultura giram nos princípios do amor incondicional e cooperação. Todos os seres nascem equipados para realizar suas tarefas e cumprir suas funções no macrossistema. A cotia trabalha, o sabiá trabalha, a formiga trabalha, os fungos trabalham, toda planta trabalha. As espécies fazem suas tarefas e realizam suas funções movidas pelo prazer interno. A gente é equipado para isso também. Se olhássemos um pouquinho dentro de nós mesmos, saberíamos disso. É muito gratificante fazer aquilo que nós sabemos. A partir dessa descoberta, cada um age no seu potencial, é útil, é querido e vive muito melhor.
Toda forma de vida faz parte do macroorganismo maior e nós também, ninguém está acima da natureza.
Como velho agricultor, posso dizer, eu nunca fui roubado por uma planta ou por um animal silvestre, só o ser humano faz isso. Tenho a produtividade dos melhores produtores da região e como subproduto ainda tenho abundante fonte de alimentos, com acréscimo de 3cm de terra preta por ano. Isso não é milagre, basta fazer aquilo que nos cabe. Parece que tem gente com raiva da fotossíntese, mas a humanidade não conhece outra forma de fazer o que as plantas fazem. Nós, autodenominados homo sapiens, não conseguimos fazer o que as florestas fazem e estamos nos comportando como destruidores ignorantes.
Algumas espécies são criadoras da primeira placenta das árvores que vão crescer ali.
Não dá mais para continuar nesse modelo em que a economia está acima da natureza e parece que o dinheiro é Deus. Precisamos seguir a ética da vida, tudo é feito para funcionar. O ecossistema segue uma ética dentro da vida do planeta na qual as relações intraespecíficas são baseadas nos princípios do amor incondicional e da cooperação, não da concorrência. Somos parte de um sistema complexo e inteligente. Quando nos autodeclaramos como os únicos seres inteligentes, começamos a ficar ignorantes e nos transformamos em câncer do macrossistema. Sem mudar essa relação, estamos atuando como um câncer no macroorganismo.
A biodiversidade da floresta amazônica é a mais rica do mundo e os processos de degradação, desmatamento e monocultivo estão perdendo um grande potencial
O sistema imunológico da vida do planeta cuida da vida do planeta. Por que esse pulgão atacou o meu feijão? Ele não está chegando para roubar. Não é concorrência, não é competição fria. É cooperação. Ele vem como parte do sistema imunológico e me mostra que tem um ponto fraco no meu sistema. Ele me mostra que cometi um erro, me avisa. Eu posso verificar se esqueci de plantar outras espécies. Agradeço os avisos que chegam e me alertam que preciso equilibrar. Observar a natureza é muito útil. Ou seja, aquilo que a indústria diz ter uma necessidade de controle fitossanitário, na verdade, é um alerta do sistema imunológico da vida. Nenhuma vida é nociva, não existem ervas invasoras, existem funções no sistema. Somos ligados com as plantas, dependemos das plantas. É muito gratificante trabalhar com a natureza e é muito confiável.
Cuidar da natureza é cuidar da casa, da mãe que nos nutre
O que você tá fazendo de bom? Vamos mudar a nossa forma de agir. O meu combustível é esperança e otimismo. Se uníssemos as forças em vez de brigar entre nós, baixando o ego e entendendo que cada um precisa contribuir no lugar de competir, podemos chegar a uma massa crítica de transformação. Tenho fé que chegaremos a ter uma massa crítica de transformação. É preciso baixar o ego, que é o maior empecilho. Cada um de nós sabe o que é certo e o que é bom. Em vez de explorar, produzir e saquear, vamos perguntar primeiro: o que eu posso fazer e como posso interagir para ser querido e útil no sistema? Todos os outros fazem isso. Isso transforma tudo. Desde as filosofias mais antigas, todas as relações são baseadas no imperativo categórico que diz para agirmos de tal maneira que os princípios utilizados nas nossas interações sejam aplicados a nós mesmo. Eu não vou matar a mãe que me nutre, eu não sou suicida. Nós vamos mudar completamente nossas interações.
*Ernst Götsch e Antonio Nobre deram aula na Fazenda Experimental da Universidade Federal do Oeste do Pará, visitaram o Centro Experimental de Floresta Ativa na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns e, na cidade de Santarém, participaram de seminário que aconteceu no auditório do Ministério Público do Pará, ao lado do grande produtor rural Rogério Vian. Essas palestras pela região foram sensivelmente costuradas por Edmara Barbosa, com parceiros da região como o Ministério Público Estadual, a UFOPA e o Projeto Saúde Alegria. No público do seminário Sintropia na Amazônia estavam sentados, lado a lado, grandes produtores de soja da região, lideranças de movimentos sociais, acadêmicos, universitários e moradores. Momento bonito de ver nos dias de hoje, quando grupos que não se comunicam muito sentam do mesmo lado da plateia para refletir sobre a vida e o futuro.