Crise humanitária que atinge povo Yanomami joga luz para a violação dos direitos de outras populações originárias no país
Onde havia água corrente e límpida, hoje há lama, montanhas de areia e contaminação, inviabilizando beber, plantar, pescar. Onde havia vida acontecendo a partir de costumes e cultura próprios, hoje se tem invasões, violência sexual, escolas fechadas, doenças e fome. Não só a terra, os rios e igarapés que atravessam territórios indígenas ganham novos contornos, delimitados pela garimpagem ilegal que, por onde passa, deixa rastros de devastação ambiental e social. A vida de crianças e adolescentes indígenas também tem sido marcada por essa triste realidade.
Engana-se quem vê como um caso isolado a crise humanitária que assola o povo Yanomami. A emergência em curso é análoga à grave condição de sobrevivência de outros povos originários no país. De Norte a Sul, a ocupação ilegal de terras movida por interesses econômicos predatórios e do agronegócio afeta a existência de inúmeros grupos, historicamente abandonados e violentados pelo Estado e por outras populações. Nesse contexto, crianças e adolescentes, que estão num momento especialmente sensível de desenvolvimento, se veem ainda mais vulnerabilizados.
A situação desesperadora do povo Yanomami é resultado dessa política de descaso, que se arrasta há décadas – agravada pela decisão do governo Bolsonaro de desestruturar os mecanismos de proteção até então existentes. Dados do Unicef de 2019, por exemplo, já alertavam que mais de 80% das crianças Yanomami avaliadas viviam desnutridas. Hoje o noticiário traz quase diariamente denúncias sobre essa tragédia anunciada. Estima-se que, nos últimos quatro anos, 570 crianças Yanomami morreram de desnutrição. Este povo sofre, ainda, com o desmonte da rede de ensino, exploração sexual de adolescentes e, mais recentemente, denúncia do Conselho Indígena de Roraima de que crianças e adolescentes Yanomami estão aguardando adoção de maneira irregular.
Este retrato dramático não se restringe aos Yanomami. Dados de 2021 do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) já mostravam que, por seis anos seguidos, aumentou o número de invasões, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio em terras indígenas: foram 305 casos em 226 áreas. E, somente no ano de 2021, o Cimi contabilizou 176 assassinatos de indígenas.
O povo indígena Munduruku, do Médio e Alto do Tapajós, no Pará, é mais um dentre os que se encontram em situação de calamidade em relação ao acesso à água, insegurança alimentar e casos de violência, além de estar vigilante para que não se torne foco de migração dos garimpeiros que estão saindo do território Yanomami. Este território, apesar de em parte já demarcado, sofre com a incidência da atividade exploratória. Em 2018, a Polícia Federal estimou que o garimpo despeja no rio Tapajós cerca de sete milhões de toneladas de rejeitos por ano, incluindo o mercúrio que, em contato com a água, contamina a cadeia alimentar. A ingestão do mercúrio pode causar problemas neurológicos sensitivos-motores e outras enfermidades graves em adultos e recém-nascidos. Um estudo realizado junto ao povo Munduruku pela Fiocruz em 2020, em parceria com o WWF-Brasil, indicou que todos os participantes da pesquisa foram expostos ao mercúrio. De cada dez, seis apresentaram níveis de mercúrio acima de limites seguros. A contaminação é maior em aldeias às margens dos rios afetados pelo garimpo. Nessas localidades, nove em cada dez participantes apresentaram alto nível de contaminação. As crianças também são impactadas: cerca de 15,8% apresentaram problemas em testes de neurodesenvolvimento.
A preservação da vida digna dos Munduruku tem sido um desafio percorrido, hoje, a partir da articulação das lideranças locais e apoio da sociedade civil para criar uma cadeia produtiva que promova a sobrevivência desse povo, garanta água limpa e proteja a terra já demarcada. É o caso da parceria entre o Projeto Saúde e Alegria, Fepipa (Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará), Fundação Avina, Unicef e WWF na implementação de sistemas de abastecimento de água potável na região.
Já no Sul, chama atenção a condição do povo Laklãnõ-Xokleng, em Santa Catarina, que aguarda decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a tese jurídica do marco temporal. Segundo esta perspectiva, só poderiam ser reconhecidas ou reivindicadas como terras indígenas áreas que estivessem ocupadas na data da promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988. A batalha judicial ameaça a permanência dos Xoklengs em seu atual território e não contempla uma característica cultural e comportamental de muitos povos, que por terem origem nômade percorreram diversos territórios ao longo de sua história. Uma decisão judicial desta dimensão não pode desconsiderar essas particularidades indígenas.
Os Xoklengs, inclusive, têm sofrido há décadas com ameaças ao seu território. Ainda no período da ditadura militar, esse povo foi vítima de um deslocamento forçado, resultado da construção da Barragem Norte. Com as obras, os Xoklengs se viram obrigados a buscar por terras mais seguras – e que garantissem sobrevida ao seu povo. Além disso, estão rodeados de atividades como a plantação de fumo, que usufrui da mão de obra exploratória de jovens Xoklengs, entre outros quadros de insegurança e violência, como entrada das drogas no território, exploração sexual e retirada compulsória de crianças indígenas de suas famílias.
Ambos os territórios exemplificam o déficit experimentado pelos povos indígenas no que se refere à atuação do Estado – quando se fazem presentes, os órgãos responsáveis por garantir direitos frequentemente acabam operando de modo falho e ineficiente.
É fundamental celebrar a mudança de patamar institucional alcançada a partir da criação do Ministério dos Povos Indígenas pelo novo governo. No entanto, o caminho para consolidarmos um cenário de proteção é longo e complexo, exigindo vontade política, orçamento e qualificação dos quadros técnicos. Na base, está a necessidade primordial de que o Estado garanta os direitos territoriais a todos esses povos. Os avanços que se espera conquistar passam também, obrigatoriamente, pela participação das diversas populações no planejamento, gestão e controle das políticas públicas.
É indispensável, ainda, formular e implementar uma pauta intersetorial para promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes indígenas. A lista de demandas é extensa – e não pode ser ignorada ou menosprezada, conforme evidenciam os poucos exemplos a seguir:
- Garantir e avançar na proteção e demarcação dos territórios indígenas
- Reconhecer e garantir os direitos linguísticos, culturais e sociais no atendimento de crianças e adolescentes nos serviços de educação e saúde
- Viabilizar o acesso a instâncias públicas e mecanismos jurídicos de proteção legal dos direitos humanos, com respeito e atenção a suas particularidades e necessidades específicas
- Garantir alimentação escolar culturalmente adequada
- Fortalecer os conteúdos de educação relacionados à pauta ambiental e climática
- Garantir a criação de Centros de Referência da Assistência Social Especializado e Conselhos Tutelares de Povos Indígenas nesses territórios
Nunca é demais sublinhar: para muitos povos, a omissão do Estado segue nutrindo cenários dramáticos, que não serão enfrentados caso a opinião pública venha a acreditar que os esforços do governo devem ser direcionados somente aos Yanomami. É preciso contemplar a riqueza e diversidade das etnias que habitam o território brasileiro, garantindo a todas acesso a seus direitos, para que o chão da infância possa sustentar o desenvolvimento do presente e do futuro dos povos indígenas.
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Maristela Cizeski é articuladora de Direitos da Pastoral da Criança Nacional e membro do Grupo Coordenador da Agenda 227
Fábio Pena é coordenador de Educação e Comunicação do Projeto Saúde e Alegria e membro do Grupo Coordenador da Agenda 227
Agenda 227 é um movimento apartidário da sociedade civil brasileira que tem como objetivo colocar crianças e adolescentes no centro da construção de um Brasil mais justo, próspero, inclusivo e sustentável para todos, a partir da concretização da prioridade absoluta garantida à população de 0 a 18 anos pelo artigo 227 da Constituição Federal.
Publicado originalmente em Nexo