Daniela Pantoja
A chamada educação do campo é uma modalidade de ensino que é capaz de transformar a vida de pessoas que estão nos lugares mais remotos de um país. Essa dinâmica de ensino é tratada pela legislação brasileira como educação rural e incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das minas e da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher também os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas.
Mais que ensino em um perímetro não urbano, a educação do campo traz possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da existência social e com as realizações da sociedade humana.
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No Brasil, esse modelo de educação surgiu no final da década de 1990 em um movimento que articulou os sujeitos que viviam nos territórios do campo, como agricultores familiares, assentados, acampados da reforma agrária, ribeirinhos e quilombolas.
De acordo com o professor Salomão Hage, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e coordenador do Fórum Paraense de Educação do Campo (FPEC), a proposta desse movimento era contrapor uma narrativa muito forte na sociedade de que o campo iria acabar por conta da migração para os centros urbanos.
“O movimento surge para confrontar essas ideias e apresentar o campo como um lugar de organização, um lugar de luta, de mobilização, de cultura, de produção, de ideia e um lugar em que o povo se organiza para garantir os seus direitos humanos e sociais já assegurados nas legislações brasileiras”, analisa.
O movimento da educação do campo também luta pelo reconhecimento de que o campo é um território diverso, com suas especificidades próprias, ligados à terra, às águas, à floresta. No campo, o trabalho é da agricultura, da pesca, do extrativismo e são práticas produtivas, cooperadas e que constituem toda a pluriversidade de territorialidades existentes no país.
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Casa Familiares Rurais e o reconhecimento para permanência no campo
Esse processo também é intensificado pelas Casas Familiares Rurais (CFRs), originadas na França, na década de 1930, por iniciativa de um grupo de famílias camponesas interessadas na formação profissional aliada à educação humana para seus filhos.
Apresentam uma forma diferenciada de aprendizado com base na pedagogia da alternância, onde os alunos, filhos de produtores rurais e agricultores familiares têm acesso ao Ensino Médio e Técnico gratuito sem deixarem suas atividades na propriedade. A dinâmica é chamada de tempo escola e comunidade. Ou seja, os alunos ficam uma semana ou mais dias na Casa Familiar Rural e uma semana em casa desenvolvendo as atividades práticas referentes à teoria aprendida no tempo escolar, utilizando o conhecimento do meio rural vinculado ao necessário aprofundamento técnico-científico sistematizado.
Um exemplo dessa dinâmica acontece na Associação da Casa Familiar Rural (CFR) do município de Belterra, no Pará, localizada na Comunidade do Prata, quilômetro 62 da rodovia Santarém-Cuiabá (BR-163).
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Cercada pela monocultura da soja e milho, a escola existe há mais de dez anos e ensina jovens vindos do campo a formação técnica em agropecuária integrado ao ensino médio.
O denominado “tempo escola e comunidade” é organizado pela coordenação e acompanhamento dos monitores, professores e da equipe de plantão. O curso de agropecuária é feito da forma integrada ao ensino médio, no decorrer do dia os alunos têm disciplinas da base comum curricular e quando retornam para suas comunidades desenvolvem as atividades práticas aprendidas.
Para aplicar essas atividades, a Sede da Casa Familiar Rural de Belterra dispõe de 32 hectares de terras distribuídos em várias unidades demonstrativas, que inclui os sistemas agroflorestais (SAF’s), produção de hortaliças e criação de aviários. A ideia nesse sentido é fazer com o que os alunos, principalmente do curso de agropecuária, tenham contato com aquilo que eles já trabalham ou vão trabalhar futuramente em suas comunidades e/ou outros lugares, como destaca Werlison Sousa, ex-aluno e diretor da CFR de Belterra e da Associação das Casas Familiares Rurais do Pará (Arcafar-PA):
“Nós temos o manejo dentro da escola, para que alunos tenham contato e aprendam a fazer vacinação, fazer biometria, fazer castração dos animais, período de germinação de produção, quebra de dormência, coleta de semente. Então, nós temos toda uma prática interligada com o tema gerador, que é o tema da alternância, onde a gente vai colocando essa questão da interdisciplinaridade, trazendo conteúdos, trazendo as intervenções externas de pessoas que trabalham com essa temática”, destaca.
Para além disso, a contribuição dos parceiros e participação ativa são essenciais no fortalecimento da dinâmica de ensino, como Sindicatos dos Trabalhadores rurais, Secretaria de Agricultura, Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (Adepará), Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Pará (Emater) e também a Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) por meio de projetos de extensão.
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Interdisciplinaridade e mudanças climáticas
No Brasil, tanto as Escolas Família Agrícola quanto as Casas Familiares Rurais utilizam a pedagogia da alternância como método de ensino. A experiência começou em 1969 no estado do Espírito Santo, no qual foram construídas as três primeiras Escolas Famílias Agrícolas.
Em agosto de 2023, durante a Marcha das Margaridas em Brasília, o Ministro de Estado da Educação, Camilo Santana, assinou uma resolução que dispõe sobre as diretrizes curriculares da Pedagogia da Alternância na educação básica e na educação superior. Também homologou o parecer do Conselho Nacional de Educação CNE/CP nº 22/2020, emitido após demanda apresentada pela União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas (Unefab), que representa os Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFA). A reivindicação era a constituição de norma relativa aos CEFFA e às políticas públicas de educação do campo.
Conforme o parecer, a pedagogia da alternância é uma realidade histórica no Brasil e emerge do interesse de comunidades educativas, a exemplo de populações camponesas e tradicionais, conforme a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e as Diretrizes Operacionais das Escolas do Campo.
Na região do Baixo Amazonas, onde se concentram as Casas Familiares Rurais de Belterra e Santarém, essa experiência mostra muitos caminhos e reflexões para a educação do campo, como pontua Danielle Wagner, professora no Instituto de Biodiversidade e Floresta (IBEF) da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e coordenadora do curso de especialização em pedagogia da alternância e desenvolvimento rural. “Por meio da pedagogia da alternância, que é um sistema de ensino diferenciado, essas escolas comunitárias têm principalmente a formação técnica profissional para a juventude do campo, das águas e das florestas, formando jovens que olhem para dentro das suas comunidades, suas áreas produtivas, e dos seus processos de organização social de forma diferente e potencializando sobretudo sistemas agroecológicos que fazem parte do território amazônico. Também transforma a forma de vida como as pessoas vão construindo a sua relação não apenas com a natureza, mas, também entre si, pensando na produção de alimentos, empoderando as mulheres, valorizando os produtos da diversidade e mostrando também caminhos de oportunidades para essa juventude.”
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Nessa perspectiva é possível observar que a pedagogia da alternância é uma forte aliada para permanência do aluno no campo e que paralelo a isso permite que o estudante contribua para a manutenção dos territórios, e que também possa compreender os cuidados que são urgentes, ou melhor, emergentes em relação às mudanças climáticas.
Ana Cecília Moura, engenheira agrônoma e professora nas Casas Familiares Rurais de Santarém e Belterra pontua que em todas as disciplinas são trabalhadas questões relacionadas às mudanças climáticas. “Em todas as nossas disciplinas trabalhamos muito com as questões relacionadas à agricultura familiar e tudo o que nela está envolvido, então as mudanças climáticas atingem diretamente os agricultores nas mais diversas vertentes e como os jovens da CFR são atores nesse diálogo, as disciplinas de forma interdisciplinar tratam também das mudanças climáticas. Cada uma de um jeito diferente, através dos instrumentos pedagógicos da pedagogia da alternância ou com alguma prática pedagógica específica”, conclui Cecília.
Na Casa Familiar Rural de Belterra, que praticamente é um ponto verde em meio a poeira deixada pelos rastros de caminhões, que exportam as produções de milho, as reflexões são feitas e ações já são desenvolvidas na prática.
De acordo com Werlison Sousa, ex-aluno e diretor da CFR de Belterra, a temática é apresentada em todas as disciplinas. A exemplo da prática do manejo sem fogo e roça sem queima, o trabalho com as práticas agroecológicas possibilita aos alunos uma reflexão sobre as mudanças climáticas. “Desde a fundação da escola a gente vem sofrendo e sentindo essa perspectiva do aumento da temperatura, os ciclos de produção estão mudando o calendário agrícola também e isso é perceptível tanto para os agricultores, e pros alunos nos territórios. A gente faz com que o aluno faça reflexão, através dos planos de estudo, ouvimos esses alunos e recebemos denúncias quanto às atividades que afetam e degradam o território”.
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A Casa Familiar Rural de Belterra possui três polos: Comunidade do Prata, com as turmas de agropecuária e técnico em secretaria escolar; Comunidade São Jorge, também com a turma técnico em secretaria escolar; e um polo no km 140 com o curso técnico em agroecologia, parceria com a Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Município de Belterra (Amabela).
Já a Casa Familiar Rural de Santarém (CFR-STM), localizada na Comunidade de Santa Maria do Eixo-Forte, zona rural do município (a primeira no contexto regional do Baixo Amazonas), a temática é apresentada de forma transversal.
A CFR surgiu em 26 de abril de 1999, a partir de um Fórum de articulação e debates do movimento social representativo de populações rurais que pediram o acesso à educação para jovens das comunidades rurais tendo em vista possíveis melhorias na produção familiar rural, ampliando esta articulação para a esfera regional e à criação de outras CFR’s.
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Devido à pandemia de Covid-19, as aulas foram suspensas, retornando somente alguns alunos para conclusão ou remanescentes. Por lá as atividades devem retornar com plano de trabalho e, segundo Maria José Alves, Coordenadora pedagógica da CRF de Santarém, em várias disciplinas são apresentadas reflexões sobre mudanças climáticas: “No plano de trabalho tem essas questões das mudanças climáticas de forma transversal no que a gente faz na escola, no plano de estudo entre os alunos fazemos aquela entrevista de que forma os seus familiares ou como os agricultores visualizam essa questão”, aponta Maria.
A CFR de Santarém dispõe de um espaço próprio a partir de doação de terra pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), antes disso precisou mudar de lugar algumas vezes.
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Por apresentar essa dinâmica do campo e cidade, e partir da vivência nos territórios, esses atores são essenciais no desenvolvimento de ações efetivas e urgentes para que se evite o colapso climático no mundo. Afinal, os alunos e alunas, sejam eles filhos de camponeses e agricultores familiares, indígenas, quilombolas ou ribeirinhos trazem consigo a missão do cuidado com a natureza e suas raízes são fortalecidas de geração em geração.
Tais ações podem ser apresentadas na prática durante o ‘tempo escola comunidade’, na CFR de Belterra por exemplo são desenvolvidas palestras e reuniões em comunidades para abordar sobre o cuidado e manejo do fogo.
Werlison Sousa, destaca que com o passar dos anos percebeu-se que os acordos de uso do fogo nas comunidades são inexistentes e diante dessa realidade é necessário voltar a debater sobre o assunto. “É uma pauta que a gente precisa voltar e fazer com que haja essa responsabilidade com o meio ambiente. Na Casa Familiar Rural nós já sentimos o aumento da temperatura e sabemos o quanto isso é prejudicial e para a agricultura familiar. Para nossa escola é um desafio você manter as produtividades durante esse segundo semestre, em que sentimos que as temperaturas estão muito altas. Sem o sistema de irrigação a gente não consegue manter as atividades produtivas”
Atualmente, a escola faz um processo de recuperação de nascentes de dois igarapés que passam próximo à Casa Familiar Rural. Em um deles foi feita manutenção recentemente. Já no outro, uma inserção de cerca de duzentas mudas de açaí. Todas essas práticas mostram que os jovens têm capacidade de criar estratégias juntamente com a comunidade para fazer menos uso do fogo e um manejo mais adequado das produções.
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Crise no ensino do campo
Mesmo diante da luta e do reconhecimento na busca pelo direito para os alunos do campo, muitas escolas estão em processo de fechamento. Para se ter uma ideia, nos últimos vinte anos, mais de 150 mil escolas foram fechadas. 101 mil fechamentos aconteceram nos territórios rurais.
No Estado do Pará, existem cerca de nove mil escolas localizadas nos territórios do campo. A maioria é pequena, multisseriada, instalada em comunidades ribeirinhas, extrativistas, quilombolas e de assentamento.
O professor Salomão Hage relata que essas escolas estão sendo pouco cuidadas pelo poder público, e muitas se encontram em precarização de infraestrutura. “Essas escolas têm sido muito pouco cuidadas pelo poder público. Uma marca forte dessas escolas é a precarização das condições de infraestrutura e muitos dos professores ainda não são qualificados. Uma boa parte é contratada de forma temporária. Esses fatores todos têm contribuído para o fechamento das escolas do campo. Motivados pela política de nucleação vinculadas ao transporte escolar”, pontuou Hage.
Segundo o professor, esse fator infelizmente afeta muito os estudantes. Pois quando se fecha uma escola quem sofre são crianças, adolescentes e os jovens que precisam se deslocar por horas, em condições às vezes pouco adequadas, e até sem se alimentar, para ter o direito à educação assegurado.
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O sucateamento e fechamento desses espaços significa o encurralamento de um território e abre brechas para a instalação de projetos que degradam o meio ambiente e violam direitos de toda uma comunidade, apagando até mesmo seu contexto histórico.
Apesar dos desafios apresentados seja para implementação e/ou ausência das políticas públicas, os alunos, professores, coordenadores pedagógicos e parceiros mostram que não existe futuro quanto a sensibilização e práticas aos efeitos das mudanças climáticas se as articulações e acordos não forem efetivados agora, e isso no âmbito federal, estadual municipal e mundial.
E como diz a canção bastante entoada pelo movimento: “Não vou sair do campo pra poder ir à escola, educação é do campo é direito não esmola”. Que no contexto atual poderia ser muito bem “Não vou morrer no campo devido a exploração predatória, pautar mudanças climáticas é urgente e sem demora!
*Reportagem para o Programa de Microbolsas Jornalismo Tapajós, uma parceria do Laboratório de Comunicação Amazônia e do Projeto Saúde e Alegria para estimular a produção jornalística de jovens profissionais da região.
Edição: Rodrigo Chagas