Quando Jussara Vanessa Salgado Batista chega em alguma comunidade do Baixo Amazonas para implantar sistemas offgrid (não conectados à rede energética) de energia solar fotovoltaica que abastecem a eletricidade ou os microssistemas de abastecimento de água, algumas famílias ficam desconfiadas. Uma mulher de 27 anos trabalhando em uma área tão técnica ainda levanta questionamentos. “A responsável pelo sistema é mulher?”, ouve, quando começa novas instalações.
Mas o desafio, que já foi assustador para a jovem, hoje é mais tranquilo. Ela aprendeu a ganhar a credibilidade das comunidades, quebrando preconceitos e abordando com cuidado as questões do seu trabalho. “No começo eu achava que não ia dar conta, mas hoje sinto mais respeito, principalmente em comunidades onde já trabalhei. Quando tem algum problema eles me ligam para pedir ajuda”, revela.
Jussara trabalha há dois anos na área de instalação de energia e água do Projeto Saúde e Alegria (PSA). Formada em 2018 no bacharelado interdisciplinar de Ciências, Tecnologias e Engenharia Física da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), é de uma nova geração de profissionais formada na própria região que passou a compor a equipe da organização.
Ela acredita que o trabalho, apesar de técnico, envolve muitas relações interpessoais. “Precisamos entender o contexto e a geografia na qual cada comunidade está inserida. Preciso fazer com que as comunidades me entendam, tendo uma fala mais horizontal”, explica. Para a engenheira, tudo fica mais fácil quando a comunidade entende cada ponto dos sistemas instalados. “A partir do momento que a gente instala um sistema ele passa a ser da comunidade, ela tem que ter zelo por aquilo e fazer as manutenções preventivas no dia-a-dia, então estamos sempre disponíveis para ajudar”, completa.
Desde 2017, quando o PSA começou com as intervenções, já foram 36 sistemas de energia solar para bombeamento de água instalados, outros 10 sistemas de energia para acesso à internet, dois para eletrificação de Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e outros dois que alimentam a energia de escolas. Até o fim de 2021 está prevista a instalação de mais 7 telecentros e 2 Unidades Básicas de Saúde – UBSs.
Jussara participou de grande parte desses projetos e por meio de seu trabalho, conheceu todos os territórios da região do baixo Tapajós, onde o Saúde e Alegria atua. “Desde o início fui surpreendida com a falta de acesso à energia 24 horas, porque crescendo na cidade, não conhecia nada dos territórios e da vida comunitária”, lembra. A primeira instalação que Jussara participou, na aldeia de Arapiranga, no rio Arapiuns, durou cerca de quatro meses entre o cadastro das famílias, a construção dos sistemas e a entrega.
“Como eram instalações em residências, eu passei a conhecer um pouco de cada família. Criei uma relação próxima e adquiri carinho por elas”. Com a entrega do projeto, Jussara conta que se sentiu envolvida e emocionada com as histórias dos moradores. “São pequenas intervenções que a gente faz mas que impactam no dia a dia de cada vida”, afirma.
A engenheira explica que um dos principais indicadores de desenvolvimento de uma comunidade é o acesso à água e à energia. Em contrapartida, um dos principais desafios de comunidades isoladas é justamente esse acesso. “Hoje, boa parte das comunidades utiliza energia de geradores, com combustíveis fósseis como diesel e gasolina, que são altamente poluentes, não têm fontes renováveis e demandam um alto custo para as famílias”, afirma. E prossegue: “A partir do momento que implementamos um sistema de abastecimento de água com energia fotovoltaica isso se relaciona diretamente na renda da comunidade”.
O gerador limita o acesso à energia a somente algumas horas por dia, o que influencia inclusive no atendimento de UBSs. Segundo Jussara, muitas unidades não funcionam à noite porque não têm energia. Com o sistema solar, as UBSs conseguem armazenar e refrigerar vacinas de forma adequada, por exemplo.
Diante da importância do seu trabalho, Jussara se sente gratificada com o retorno das comunidades. Ela entende que com o alto custo para levar a rede de distribuição para uma comunidade isolada, o governo acaba não tendo interesse nessas instalações. O ganho na qualidade de vida via energia solar desperta o interesse das famílias e acaba estimulando comunitários a realizarem capacitações em Santarém.
Entretanto, não são apenas as famílias que se beneficiam com os conhecimentos das instalações. Jussara conta que antes de começar a trabalhar no PSA seu conhecimento na área era basicamente teórico. “A universidade é diferente do trabalho em campo. Agora meus desafios passam pela logística, transporte, conhecimento dos territórios, abordagem com as comunidades”, uma experiência que, segundo a engenheira, é fundamental para seu desenvolvimento.
Jussara pretende continuar trabalhando com energia solar e pensa eventualmente em empreender na área, mesmo que sempre com os sistemas que atendem comunidades isoladas. “É o que eu gosto de fazer apesar de todos os desafios e o cansaço”.
A vivência do trabalho em campo impacta também na vida pessoal de Jussara, na sua perspectiva de mundo. “A gente na cidade tem uma visão muito limitada, acha que tudo é fácil. O PSA influenciou bastante na minha visão de mundo e ampliou minha forma de pensar em relação ao próximo”, relata. “Isso impactou na minha relação com minha família, com meus amigos. Passei a ter mais respeito pelas histórias dos outros”, conclui.
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Eu sou Saúde e Alegria traz histórias de pessoas que lutam pela cidadania e pela floresta em pé em comunidades da Amazônia paraense. Uma campanha em comemoração aos 35 anos do PSA.
Reportagem: Júlia Dolce | Vídeo e fotos: Priscila Tapajowara
Trilha sonora: Cristina Caetano
Coordenação editorial: Priscila Cotta e Samela Bonfim
Coordenação geral: Fabio Pena