Enquanto se esforçam para levar atendimento aos afetados, organizações da sociedade civil cobram em carta aos governos, medidas voltadas à saúde, segurança alimentar, acesso à água potável, combate a incêndios e auxílio emergencial
Em meio a mais uma estiagem severa, organizações da Sociedade Civil do Baixo Amazonas encaminham carta propositiva aos órgãos governamentais cobrando medidas emergenciais e estruturais, de curto, médio e longo prazos para o enfrentamento dos impactos das mudanças climáticas na região.
“Diante da crise climática que vem assolando todo o país, nós, dos movimentos sociais, sindicatos, associações e sociedade civil organizada, vimos apresentar as grandes dificuldades que a região Oeste do Pará vem enfrentando com a maior estiagem dos rios registrada nos últimos tempos em nossos municípios, os recorrentes casos de incêndio que estão devastando nossas florestas e afetando a saúde da população, e pedir que seja aplicado um plano de ações emergenciais para sanar as principais necessidades da nossa população”, enfatiza o documento.
A construção da Carta é fruto de uma articulação das organizações tanto para fortalecer a incidência política junto aos tomadores de decisões, como para somar esforços com ações emergenciais que atenuem o sofrimento das famílias atingidas pelos extremos climáticos.
Esta articulação foi formada em 2023 para o enfrentamento até então da pior seca da história, e retomada agora diante da estiagem recorde que superou a do ano passado. Conta com organizações como o Projeto Saúde e Alegria (PSA), Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR), Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns (CITA), Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), Organização das Associações e Moradores da Reserva Extrativista Tapajós Arapiuns (TAPAJOARA), Federação das Associacoes de Moradores e Comunidades do Assentamento Agroextrativista da Gleba Lago Grande (FEAGLE), Movimento Tapajós Vivo (MTV), Centro de Estudos, Pesquisas e Formação dos Trabalhadores do Baixo-Amazonas (CEFT-BAM), Grupo de Defesa da Amazônia (GDA), Casa Familiar Rural de Santarém, WWF Brasil, Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores Familiares do Baixo Amazonas (FETAGRI- BAM), Federação das Associações de Moradores e Organizações Comunitárias de Santarém (FAMCOS), Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Santarém (AMTR), Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e Sociedade para a Pesquisa e Proteção do Meio Ambiente (SAPOPEMA).
A carta destaca que a falta de chuva e o baixo volume dos rios está dificultando o transporte, o acesso à água potável, a segurança alimentar, a saúde e a educação nas aldeias e comunidades da região. “Quando o rio seca, impacta na vida de todo mundo. E se a gente não consegue produzir na terra, vai impactar ainda mais. Uma ação governamental tem que olhar todo mundo, não importa se é pescador, agricultor, indigena ou quilombola, as ações tem que chegar pra todos que estão isolados e necessitados. Essa iniciativa é muito importante, porque chama atenção pra situação dessas famílias, dá um pouco de esperança pra elas”, enfatizou Ivete Bastos, presidente do STTR.
“É para mostrar para o governo o quanto essa seca está impactando os territórios, têm famílias precisando e nos territórios quilombolas não é diferente. Por esse motivo, estamos juntos a essas organizações para mostrar que nós estamos sofrendo com esse momento climático que estamos passando”, explicou Miriane Coelho, Presidente da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém – FOQS.
Por conta dessa forte estiagem, a Prefeitura de Santarém já decretou situação de emergência. E no fim de setembro, de forma inédita, a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) decretou Situação de Escassez Quantitativa de Recursos Hídricos no trecho baixo do rio Tapajós, compreendido entre as cidades de Itaituba (PA) e Santarém (PA).
No entanto, as organizações afirmam que é preciso ir além dos decretos e apoios esporádicos, é preciso que o estado brasileiro atue com mais empenho e assertividade. Margareth Maytapu, coordenadora do Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns, explica que o governo está enviando algumas cestas básicas e galões de águas, mas são insuficientes para o tempo e a quantidade da demanda em toda a região.
Além disso, ela diz que “estamos recebendo alguma ajuda humanitária, mas precisamos que o governo olhe com mais carinho, pois, por exemplo, chegam as cestas mas nós temos que nos virar para conseguir a logística para levar nas aldeias distantes, o que se torna muito difícil e caro. Estamos pedindo socorro, correndo atrás dos parceiros, mas a demanda é muito grande só para entidades sociais, é preciso do governo para ajudar a população”.
Caetano Scannavino, coordenador do Projeto Saúde e Alegria (PSA), corrobora com Maytapu: “Como sociedade civil, a gente tenta ajudar, mas a sensação é de enxugar gelo, sem água. Apesar de reconhecer a situação de emergência, é preciso mais ação concreta dos governos nessas áreas, uma atenção prioritária e emergencial para escalar soluções como essas propostas na Carta para um número muito maior de famílias. Qualquer soma de esforços nesse sentido contará com nosso total apoio”.
SOLUÇÕES PARA ACESSO À ÁGUA POTÁVEL
Além da cobrança aos responsáveis por soluções, as organizações seguem em campanha buscando apoio para atender as áreas mais críticas, principalmente com a entrega de cestas básicas e filtros de nanotecnologia que transformam as águas impróprias em potáveis.
As organizações fizeram um mapeamento nos territórios das famílias a serem priorizadas, em situação de maior risco, seja pela insegurança alimentar, seja pelo estresse hídrico. Com isso, está sendo possível apoiar de acordo com as necessidades mais críticas de cada região.
Para facilitar o acesso à água potável, a campanha tem também como meta inicial a distribuição de 5 mil filtros de nanotecnologia até o final do ano e início do próximo, multiplicando o acesso a essa tecnologia que tem sido implantada com sucesso através da aliança entre o PSA e a Water Is Life.
“Secas e cheias fazem parte do ciclo anual amazônico. O problema é que fenômenos extremos estão cada vez mais frequentes. Triste ver que os que menos contribuíram para isso são os que mais sofrem. Difícil explicar para sociedade brasileira que o ribeirinho passa por estresse hídrico na maior bacia de água doce do mundo. Mas é a realidade, a Amazônia tem sede”, lamenta Scannavino.
A aquisição destes filtros em maior número está sendo possível através de uma ampla mobilização nas redes sociais apoiada pela plataforma de vaquinha eletrônica Doe Bem somada ao suporte adicional de parceiros como o Instituto Coca-Cola, Natura, Bem-te-vi, Toyota, Santander, Fundo Casa, ASBZ Advogados, Fundação Konrad Adenauer (KAS), Avina, Santander e Iturri.
Jussara Salgado, coordenadora do Programa de Infraestrutura Comunitária do PSA, atua diretamente com soluções para a melhoria do acesso à água nas comunidades: “O ideal são projetos estruturais, como os sistemas fotovoltaicos e autogeridos de abastecimento de água encanada que também seguimos implantando. Mas na falta deles, numa situação de emergência, esses filtros podem reduzir o sofrimento das famílias ao tratar a água através de uma micromembrana que retém 99,99% das impurezas. Com a estiagem, as águas concentradas ficam ainda mais barrentas. Mesmo nesses pequenos filetes, os filtros de nanotecnologia conseguem operar. São essenciais também na chegada das chuvas e subida das águas com os dejetos que estavam em terra. A virada de ano é a época dos surtos de diarreias, sobretudo nas crianças. São filtros de baixo custo, fácil transporte, baixa manutenção. Chegam a durar cerca de dois até 5 anos e deveriam ser escalados via políticas públicas, uma solução mais efetiva e barata do que entregar de helicóptero água mineral uma vez ou outra para algumas poucas famílias”.
No último dia 29, ocorreu mais uma ação de suporte às famílias atingidas pela estiagem, com as organizações Projeto Saúde e Alegria (PSA), Sapopema, e Brigada de Alter a frente da entrega de filtros de nanotecnologia (acoplados em baldes) doados pela Fundação Iturri. Foram distribuídas mais de 70 unidades para comunidade Igarapé da Praia, região de várzea do Tapará, município de Santarém.
“É urgente essa necessidade das comunidades de ter alternativas, de detectar tecnologias que possibilitem elas ter minimamente uma água com qualidade para consumo. Além disso, é urgente, hoje , tecnologias e políticas públicas que proporcionem o mínimo acesso a uma água de qualidade”, disse a bióloga da Sapopema, Poliane Batista.
Moradores da região relatam a dificuldade do acesso a água de qualidade, essencial para as atividades do dia a dia e para o consumo. “A gente tem que se locomover mais de dois quilômetros para conseguir água. Esses filtros vão ajudar muito no consumo da água potável. Antes tínhamos que comprar ou tomar do poço, mas não usamos filtro e bebíamos assim mesmo”, disse a moradora Idiane Cristina, da Comunidade Igarapé da Praia.
“Nessa seca que nós estamos passando, a maior dificuldade é mesmo a água. Nós temos um poço, recebemos esses filtros, mas só agora vamos poder tomar água potável. Isso vai amenizar o sofrimento aqui na comunidade. Esse nosso rio era fundo, e hoje em dia está nessa situação” contou Moacir Silva, morador que recebeu o filtro-balde.
“As maiores dificuldades são o transporte para chegar às margens do rio, porque está muito longe, e água para beber. Se quiser água potável tem que comprar na cidade e trazer pra comunidade. Os baldes vão ajudar demais, com certeza, é o que estamos precisando no momento”, contou Francisco Vasconcelos, morador da comunidade.
MEDIDAS APRESENTADAS NA CARTA
O documento apresenta medidas organizadas em prioridades que vão desde as emergenciais, para já, até as de longo prazo. A solicitação pede intervenção para o enfrentamento desses desafios. Elas abrangem: Escassez de Água Potável, Perda de Safra, Incêndios Florestais, Isolamento de Comunidades, Insegurança Alimentar e Nutricional.
Veja a carta e conheça as medidas:
De caráter emergencial:
1- Fornecimento de água potável: distribuição de água potável para as comunidades afetadas, disponibilização de 50 mil filtros de nanotecnologia.
2- Alimentação: disponibilização de cerca de 100 mil cestas básicas e liberação permanente com duração de 6 (seis) meses de cesta básica para as famílias afetadas.
3 – Saúde: disponibilização de 10 mil kits de medicamentos.
4- Combate a Incêndios: disponibilização de 200 brigadistas equipados com sopradores e transportes como: helicóptero, 30 motocicletas, lanchas e combustível, e capacitação técnica para formar novos brigadistas.
5 – Fortalecimento de órgãos públicos: disponibilização de recursos para o IBAMA e ICMBio, juntamente com o Ministério do Meio Ambiente.
6- Auxílio emergencial aos indígenas, quilombolas e agricultores: criar um programa de ajuda financeira para as categorias.
De curto prazo:
- Reativação de poços.
- Mangueiras e motor bomba.
- Apoio aos agricultores.
- Assistência de emergência.
- Criação de um banco de sementes e mudas comunitárias.
- Gestão e governança participativa das águas.
De longo prazo:
- Desenvolvimento sustentável.
- Abertura e estruturação de ramais.
- Apoio à medicina caseira;
- Acelerar a elaboração do Plano Clima.
ARTICULAÇÃO PERMANENTE
O documento sugere também a criação de um comitê de crise permanente, composto por representantes das associações, sindicatos, e organizações sociais. A carta já foi enviada para ministérios, Governos estadual e municipal, ANA, MIDR, Secretarias governamentais, Departamentos e Organizações que atuam na segurança hídrica. A ideia é que essa articulação siga mobilizada mesmo após esse período emergencial de estiagem, cobrando e chamando atenção para o cumprimento das medidas propostas, ações de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas que impactam a região.
“Esse movimento tem viés estratégico de comulgar ações, de ser um ambiente também tranquilo e propício para a gente trocar informações, a gente agir mais em comum e pensar essa vivência e mais ainda a sobrevivência do Rio Tapajós. Tanto na sua cultura, quanto na sua história e trajetória, de fazer esse trabalho coletivo, de pensar essas estratégias, essas soluções para juntar forças. Independente do movimento, independente da organização, juntar forças. E pensar o como fazer o agora, que ações fazer agora, na crise tão catastrófica que o Tapajós está vivendo, mas também em medidas de curto e longo prazo, ações podem ser feitas para que isso que está ocorrendo seja mitigado e seja também solucionado, isso em todas as esferas possíveis”, destacou Johnson Portela, coordenador do Movimento Tapajós Vivo.