Programação será realizada na próxima terça-feira (07/06) em Santarém, contando com seminário que será abordará a importância, avanços e desafios para consolidação da política pública de Saúde da Família Fluvial a partir da experiência de Santarém e evento de inauguração do Barco Hospital Abaré II, reformado e pronto para atender as comunidades da região
Barcos-hospitais implantados na região do Baixo Tapajós pela ONG Projeto Saúde e Alegria em parceria com prefeituras e organizações locais, se tornaram alternativas para levar saúde às populações ribeirinhas de áreas remotas da Amazônia. Evento busca discutir estratégias para consolidação do modelo pioneiro que inspirou a política de Saúde da Família Fluvial, hoje com mais de 60 embarcações espalhadas pela Amazônia e Pantanal.
O seminário será realizado no auditório do Centro de Informação Ambiental – CIAM, em Santarém, no dia 07 de junho, a partir das 9h e contará com a presença de representantes do Projeto Saúde e Alegria, Prefeitura de Santarém, Secretaria Estadual de Saúde, Ministério da Saúde, Conasems, Cosems, BNDES,entre outros parceiros de órgãos públicos e da sociedade civil.
Para o coordenador de saúde do Projeto Saúde e Alegria, médico Fábio Tozzi, o momento será importante para resgatar o histórico da política pública que inspira secretarias de saúde de vários estados: “representa uma grande vitória para toda região, comunidades, o Saúde e Alegria, Conselho Municipal de Saúde e SEMSA [Secretaria Municipal de Saúde]. É parte de um esforço coletivo, os resultados estão aí, mas ainda existem muitos desafios.”
Foi em Santarém onde tudo começou, através do Barco-hospital Abaré I, implantado em 2006 pelo PSA em parceria com as Organizações, Conselhos e Prefeituras locais para atender as comunidades do Tapajós. O bem sucedido modelo de atenção básica chamou a atenção do Ministério da Saúde, inspirando a estratégia de Saúde da Família Fluvial, política pública lançada em 2010 para apoiar os municípios ribeirinhos com barcos de atendimento, para as regiões da Amazônia e do Pantanal. Hoje já são mais de 60 UBSFs (Unidades Básicas de Saúde Fluvial), além de outras em construção ou entrando na água.
É o caso do Barco Hospital Abaré II, que será reinaugurado na programação do dia 07/06, em cerimônia que acontecerá ao final da tarde na orla de Santarém. Foi adquirido em 2011 pelo PSA e repassado na forma de comodato à Prefeitura de Santarém para atender à região do Arapiuns. No entanto, a embarcação passou por problemas de manutenção, tendo que parar as operações, precisando de reparos. Agora em 2022, passou por uma ampla reforma, que envolveu também a modernização dos equipamentos navais e de saúde, a partir de uma soma de esforços em grande parte apoiada com recursos do Projeto Saúde e Alegria (através de seus doadores, como o BNDES e a Fundação OAK), e contrapartidas da Prefeitura (a partir de uma emenda parlamentar do Deputado Airton Faleiro).
“A manutenção da embarcação sempre foi responsabilidade do Poder Público. Vimos a dificuldade nesse sentido e resolvemos ajudar. Por um lado, procurando revitalizar a embarcação com tecnologias de ponta, não apenas para a saúde, mas também para a redução do consumo de combustíveis e do custeio das rodadas. Por outro lado, adequamos as instalações para as novas condicionantes do Ministério para a Saúde Fluvial, assim o Abaré II fica apto como UBSF e o município poderá receber as verbas federais para apoiar suas operações e a manutenção.” – afirmou Caetano Scannavino.
Para moradores de comunidades beneficiadas, como o Arapiuns, o anúncio de retorno dos atendimentos de saúde foi motivo de muita esperança. “Essa política pública foi conquistada por todos nós e se adequa a nossa região. Através do Abaré II, os atendimentos conseguem ser mais acessíveis porque vêm até a nossa comunidade. Pra gente continuar com esse bem estar com a natureza, Amazônia, precisamos estar bem e saudáveis”, disse Benezildo Costa, morador da comunidade de São Pedro.
Assim, o evento de reinauguração do barco será também um importante momento para comemorar o fortalecimento da estratégia de Saúde da Família Fluvial na própria região onde começou. “Santarém é o berço da Unidade Básica de Saúde Fluvial. Uma política pública que deu certo e virou espelho para a política nacional”, se orgulha o prefeito Nélio Aguiar, também médico. “Isso fortalece a atenção primária em saúde em áreas de difícil acesso, e por meio das embarcações, médicos chegam a áreas remotas”.
O médico e fundador do PSA, Dr. Eugênio Scannavino, também comemora: “É muito emocionante para nós. Uma história que começamos há 17 anos com o Navio Hospital Abaré I que agora vemos se multiplicar para outras regiões, fazendo de Santarém uma referência deste modelo para toda a Amazônia e lugares com contextos similares”.
Abaré I, a embarcação mãe
Atuando nesta realidade há cerca de três décadas, inicialmente promovendo ações de educação em saúde, saneamento e prevenção, o PSA via a necessidade de avançar na construção de uma solução resoluta e com escala para o atendimento médico regular em comunidades de áreas remotas. Quando necessitavam de atendimento, os pacientes dessas localidades “sofriam para ir até a cidade, pagando passagem de barco em longas viagens, chegando na cidade tendo que esperar na fila e muitas vezes não ter casa pra se abrigar. Era uma dificuldade muito grande”, explica a liderança da comunidade Suruacá, no Rio Tapajós, Marinalva Colares Bentes.
A situação começou a melhorar em 2006, quando o Projeto Saude e Alegria se organizou para colocar nas águas do Rio Tapajós o primeiro barco hospital, o Abaré – nome escolhido pelas comunidades, que em tupi significa “amigo cuidador”. Contou com o suporte da ONG holandesa Terre Des Hommes (TDH), que financiou sua construção, repassando-o via comodato ao PSA, além de apoiar as operações nos anos iniciais.
Em parceria com as prefeituras, o barco passou a atender cerca de 15 mil ribeirinhos de 72 comunidades das áreas rurais dos municípios de Santarém, Belterra e Aveiro, através de rodadas de visitas com frequência de retorno a cada 40 dias.
“É um modelo ativo, em que o atendimento vai até a casa do paciente, importante num contexto como o da Amazônia, com populações dispersas, longas distâncias. Imagina um idoso, doente, tendo que se deslocar no sol forte ou na chuva por horas de canoa até a localidade mais próxima que conta com um Posto de Saúde, e quando chega lá, os serviços acabam sendo muito limitados, pouco resolutos, por falta de equipamentos, insumos e profissionais”, explica o Dr. Fábio Tozzi.
O serviço incluía todos os programas então previstos pelo Ministério da Saúde no campo da atenção básica: saúde da família, planejamento familiar, saúde da criança e imunizações, saúde da mulher e pré-natal, saúde oral, atendimentos médicos e exames de rotina, pequenas cirurgias e atendimentos de emergência.
A partir da experiência em mobilização comunitária do Projeto Saúde e Alegria, o modelo incluiu também um trabalho de educação e prevenção, com o uso da arte e do lúdico para promover boas práticas de higiene, cuidados pessoais, prevenção às DST e HIV, alimentação e nutrição, aleitamento materno, direitos das crianças e adolescentes e da mulher.
“Ao invés do vírus da doença, é preciso promover o vírus da saúde”, brinca Eugênio Scannavino, que lembra o lema de todo trabalho: “Saúde, alegria do corpo, e Alegria, a saúde da alma”.
Uma política pública de saúde adequada à realidade da Amazônia
A saúde básica é de competência dos municípios, que na Amazônia são do tamanho de países. Não são fáceis os desafios de uma Prefeitura como a de Altamira/PA, por exemplo, para fazer chegar a atenção básica junto aos interiores, com cidadãos dispersos em uma área maior que a Grécia ou Portugal.
“Os mecanismos de arrecadação atendem um padrão nacional que não foi desenhado para a realidade amazônica, com longas distâncias, dificuldades de acesso, transportes, comunicações e energia. Os custos logísticos pros serviços assistenciais chegarem na ponta são muito mais altos do que em qualquer outra região do país. Sem políticas adaptadas e estratégias diferenciadas para a região, a conta não fecha”, explica Caetano Scannavino, coordenador do PSA.
Com o funcionamento do Abaré I, foi possível planejar os custos operacionais e os recursos humanos a partir de uma configuração adaptada para atender a realidade ribeirinha. Os resultados se demonstraram animadores tanto para as comunidades beneficiadas quanto para os entes envolvidos com a saúde na Amazônia.
“Alcançamos uma resolutividade de 93%, com apenas 7 a cada 100 pacientes sendo encaminhados para os centros urbanos. Podendo resolver de forma mais ágil no próprio local, o Abaré ajudou a desafogar as unidades urbanas, reduzir os custos com internações, diminuir aquelas situações de pacientes que chegavam na cidade com doenças antes simples, mas que se agravaram por falta de atendimento em tempo hábil, tornando mais complexo e oneroso o tratamento”, complementa Caetano.
Diante da visibilidade alcançada, dos ganhos de escala, dos impactos positivos nos indicadores de saúde, das parcerias estabelecidas com o poder público, do controle social através dos Conselhos, o Modelo Abaré chamou a atenção do Ministério da Saúde (MS), que passou a estudá-lo e construir juntamente uma proposta de inclusão ao SUS.
Príncipe Charles, na sua visita ao país em 2009, reservou um dia de sua agenda para conhecer o Abaré e o trabalho do Projeto Saúde e Alegria
“Nós sempre tivemos como diretriz que nosso trabalho como ONG não era ocupar o papel do estado, mas somar esforços, cocriar modelos demonstrativos que possam ser absorvidos pelas políticas públicas”, explica o fundador do PSA, Dr. Eugênio Scannavino.
Baseado no modelo implantado no Tapajós, o Ministério da Saúde lançou em 2010 a política de Saúde da Família Fluvial, com abrangência para toda a região amazônica e pantaneira. Em dezembro do mesmo ano, o Abaré I foi integrado ao SUS, e credenciado como a primeira Unidade Básica de Saúde Fluvial (UBSF) do Brasil.
Desde então, os municípios da região passaram a contar com o apoio do MS para viabilização de barcos de atendimento em suas áreas ribeirinhas. A política prevê repasses federais hoje da ordem de 1,1 milhão de reais anuais por embarcação, para uso exclusivo no custeio das operações, como despesas com combustíveis, medicamentos, tripulação, equipe médica, entre outras necessidade.
“Com a política pública, os municípios passaram a ter melhores condições infraestruturais e financeiras para implementar e replicar essa experiência que a gente começou no Tapajós para os cidadãos das áreas mais longínquas. Entendemos que cumprimos nosso papel como executor de frente, repassando então a gestão plena para o poder público. Daí em diante, passamos a apoiar o controle social e a replicação do modelo” – explicou Eugênio Scannavino.
Além da gestão, o Abaré se tornou também patrimônio público, em um arranjo pensado para incrementar a geração de conhecimentos e disseminação de boas práticas. Em agosto de 2017, foi oficializado o repasse definitivo da embarcação pela TDH para a Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Hoje, o barco é mantido através de um acordo de cooperação entre a Universidade, responsável pela gestão naval, e a Prefeitura de Santarém, responsável pela gestão das ações assistenciais através da SEMSA, como proponente da política de Saúde da Família fluvial junto ao Ministério.
Diante disso, além dos atendimentos, o Abaré I passou a ter condições de diversificar o seu papel social, também como um barco-escola, voltado para o ensino, pesquisa, extensão, receptivos de estudantes, voluntários e residentes, formação de novos profissionais para atuar na região e avançar na interiorização da medicina.
“O Abaré possibilita a vivência de nossos estudantes a realidade de nossas comunidades na Amazônia. Também tem recebido estudantes de várias partes do país. Os laboratórios permitem às equipes médicas embarcadas o diagnóstico e o mapeamento da situação de saúde de forma célere. vice-reitora” – ressaltou a vice-reitora da Ufopa, Aldenize Xavier.
Replicação do modelo, filhos do Abaré I: o Abaré II e outras unidades fluviais pela Amazônia
Com os avanços da experiência na forma de política pública, o Programa de Saúde do PSA se voltou para o aprofundamento, disseminação e expansão do modelo. Em 2011, o PSA adquiriu o Abaré II, uma segunda embarcação repassada à Prefeitura de Santarém para atender à região do Arapiuns. Após os problemas de manutenção, tendo paralizado as operações, em 2022 passou por uma ampla reforma e está sendo reinaugurado.
Além dele, segundo o Ministério da Saúde, atualmente existem mais de 60 projetos de embarcações aprovados. No estado do Amazonas, por exemplo, foi inaugurada em 2019 a unidade de Nhamundá, a primeira Unidade Básica da Saúde Fluvial (UBSF) do estado totalmente construída com recursos federais. Nomeada ‘Igaraçu’, que na língua tupi significa Canoa Grande, a USBF tem 24 metros de comprimento e conta com consultórios de atendimento médico, enfermagem e odontológico. Seus aposentos internos acomodam farmácia, laboratório, salas de vacinas, curativo, coleta de material e esterilização.
Além do Pará e Amazonas, outras embarcações foram construídas (ou estão em processo de construção) nos estados do Acre, Amapá, Mato Grosso, Rondônia, Roraima, Tocantins, Maranhão e na região do Pantanal sul-mato-grossense.
“O anseio da população é sempre voltado para a melhoria da qualidade de vida. A gente espera que a população entenda que esse patrimônio é do povo. E quem deve monitorar é a própria população. A Secretaria de Saúde é a responsável pela gestão dos barcos, mas é preciso que a população acompanhe todo esse processo, participe e dê as informações aos Conselhos Municipais de Saúde, porque é assim que a gente pode ir pra frente. O importante é que a população receba um atendimento digno como sempre almejou” – finaliza Manoel Edvaldo Santos, liderança do Baixo Amazonas.