“Carecemos de políticas e entendimento prioritário da economia do conhecimento da natureza” – Caetano Scannavino em entrevista à GIFE

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A Amazônia Legal, que compreende a totalidade ou parte de nove estados brasileiros – Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins – corresponde, com seus 4,2 milhões de quilômetros quadrados de área de cobertura natural, a 72% da área natural do país.

Considerando a importância de preservar a região e unir esforços para tal, diversas iniciativas nacionais e internacionais endereçam desafios relacionados a essa localidade. Uma delas é Amazônia Legal em Dados, uma plataforma criada por Uma Concertação Pela Amazônia, iniciativa que reúne mais de 250 lideranças que consideram o entendimento da complexidade da Amazônia como condição essencial para o desenvolvimento do país.

A plataforma reúne dados e informações de 113 indicadores divididos em onze temas: demografia, educação, saúde, segurança, desenvolvimento social, economia, ciência e tecnologia, infraestrutura, saneamento, meio ambiente e institucional. Com 808 municípios e 29,3 milhões de habitantes, a região apresenta desafios como a taxa de analfabetismo – que, apesar da tendência de queda, era de 9,4% em 2019 -; a taxa de homicídios – segunda maior do país em comparação com outras regiões -; o percentual de 22,9% de pessoas vivendo em moradias inadequadas; além de questões diretamente relacionadas ao clima e à preservação, como a emissão de 39,2 toneladas de dióxido de carbono (CO2) por habitante em 2019, superior às demais regiões e ao resto do Brasil no período 2009-2019.

Participante da mesa Investimento Social pela Amazônia, realizada no âmbito dos encontros online de 2020 do 11º Congresso GIFE, Caetano Scannavino, empreendedor social e coordenador da organização Projeto Saúde & Alegria (PSA), explica que, muitas vezes, quando o assunto é Amazônia, é comum voltar o debate apenas para o lado ambiental. Entretanto, deixa claro que sem resposta ao social não há ambiental.

O redeGIFE conversou com o ativista sobre a importância de parcerias para endereçar os desafios da região, bem como a necessidade de todo o país ampliar sua compreensão sobre a Amazônia. Confira a seguir.

redeGIFE: Qual é o benefício de ouvir as populações locais e valorizar os saberes das ‘pessoas da floresta’, tanto por parte dos formadores de opinião, como dos formuladores de políticas públicas? Essa escuta ativa pode ajudar a modelar melhor as ações pensadas para a Amazônia? 

Caetano: É importante que outras regiões façam uma escuta ativa em relação à Amazônia e a seus povos, não só para modelar melhor as ações para a própria região, como também para o país e o planeta como um todo, uma vez que o saber – principalmente dos povos que interagem com a floresta no seu dia a dia – trazem aprendizados para a vida, para a solidariedade humana e para um mundo com mais cooperação. Eu mesmo tenho uma experiência nesse sentido. Sou de São Paulo e fui criado em um ambiente urbano. Vim para a Amazônia para ficar seis meses e estou há 33 anos. O que me prendeu não foi só a beleza do rio Tapajós, mas principalmente a oportunidade de interagir com pessoas, que por sua vez interagem e têm uma relação simbiótica com essa natureza. Costumo falar que São Paulo precisa mais da Amazônia do que a Amazônia de São Paulo, pois esses saberes amazônicos podem ajudar a cidade a ficar mais selvagem no sentido de trazer mais verde para o seu dia a dia, e ser menos civilizada no sentido de não saber nem quem é o vizinho que mora no mesmo prédio há dez anos. Nesses 33 anos, tenho aprendido muito mais com o povo daqui do que ele comigo. A sociedade brasileira precisa se abrir para esse conhecimento.

redeGIFE: Como um melhor entendimento nacional sobre a Amazônia pode beneficiar não só a região, mas o Brasil como um todo, inclusive com investimentos mais assertivos?

Caetano: A sociedade brasileira, principalmente o eixo Rio-São Paulo, centro econômico e formador de opinião pública do país, precisa assumir mais a Amazônia, procurar compreender a realidade dos 25 milhões de habitantes da região e aos povos da floresta. Só assim vai deixar de enxergar a região como um ônus de conflitos e desmates e passar a ver o grande bônus que nós temos nas mãos: uma área que se manejada com inteligência, com certeza vai impactar o PIB [Produto Interno Bruto] do país, ainda mais em tempos de crise climática, em que as riquezas determinantes do planeta começam a mudar de cor: do preto do petróleo para o verde da floresta em pé. Nós somos o país agraciado com a maior biodiversidade do mundo. Então, proteger a Amazônia é uma responsabilidade da sociedade brasileira. Em uma simulação na qual a Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, retirou a Amazônia do mapa, teríamos um aumento da temperatura global da ordem de 0,25ºC. No Brasil, o aumento seria de 2ºC, o que inviabilizaria qualquer atividade econômica do agronegócio, hidrelétricas, geração de energia. Então, é, sim, uma responsabilidade nossa e o mundo está preocupado com o nosso trato em relação a essa região. A melhor forma de garantir a soberania sobre a Amazônia é construir um projeto para essa região e cobrar apoio do restante do planeta, até porque os benefícios da Amazônia são globais e os custos de conservação permanecem locais.

Centro Experimental Floresta Ativa na Resex Tapajós Arapiuns em Santarém, é modelo de bioeconomia. Foto acervo PSA.

redeGIFE: Você avalia que ainda existe uma polarização de discursos que coloca desenvolvimento e conservação em lados opostos?

Caetano: Esse debate de desenvolvimento versus meio ambiente, de ONG versus progresso é completamente errado. Ninguém é contra as facilidades de transporte, energia e comunicações, mas o que precisamos debater de fato é que modelo de desenvolvimento nós queremos. Se é um modelo só para o agora ou também para as futuras gerações, para poucos ou para todo mundo, para frente ou para trás. Até hoje, o Brasil devastou o equivalente a uma área de duas Alemanhas de floresta amazônica. Segundo o Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] e o INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], 63% dessa área devastada é ocupada, hoje, por pecuária de baixíssima produtividade. Outros 23% nós abandonamos. Então nós estamos desmatando para ficar mais pobre. Eu não acho que a soja e o boi tenham que ser os vetores da visão desenvolvimentista da Amazônia como acompanhamos nos últimos anos. Mas nas áreas agricultáveis já consolidadas, que não têm mais volta, por que não pensar em uma política robusta de incentivo para o agricultor comprometido com a produção sustentável, para que ele possa transitar desse jeito arcaico de produzir para um jeito mais eficiente, mais amigável ao meio ambiente, que gere mais receita com menos terra? Assim é possível reduzir a pressão sobre o desmatamento, sobre unidades de conservação [UCs] e territórios indígenas.

Manejo de andiroba é uma das apostas de comunidades tradicionais, como a Floresta Nacional do Tapajós. Estimativa em 2021 é coletar 30 toneladas.

redeGIFE: Como você enxerga o uso de ativos da floresta em prol do desenvolvimento econômico?

Caetano: A bioeconomia, a economia do conhecimento da natureza, da biodiversidade, da floresta em pé, é outro campo muito importante, no qual nós carecemos de visão, de políticas e entendimento prioritário. Isso tem ligação direta com vocação econômica para uma região como a Amazônia. Um bom modelo econômico tem que ter espaço para todos, não só grandes e médios, mas principalmente também para os pequenos. Estamos falando de cacau, açaí, andiroba, cumaru, extração de óleos essenciais e vegetais. Muito disso é baseado em saberes dos povos tradicionais, que precisam ser reconhecidos, valorizados e compensados por isso. Há um potencial tremendo para desenvolver pesquisas, tecnologias, processamento e agregação de valor desses insumos da biodiversidade com demandas junto às indústrias farmacêuticas, cosméticas e alimentícias. Caminhos existem. Não se trata de uma questão de ser a favor ou contra o agronegócio e o desenvolvimento. Eu sou contra derrubar a floresta para colocar boi ou plantar soja e quando a sociedade brasileira começar a dedicar uma atenção maior à Amazônia, vai perceber que não estamos apenas perdendo, mas deixando de ganhar.

Projeto de Meliponicultura do Programa Floresta Ativa do Saúde e Alegria tem contribuído para geração de renda sustentável. Foto PSA.

redeGIFE: Para pessoas de fora, pode parecer estranho falar em cidades no meio da floresta. Mas dados apontam que mais de 70% da população reside em áreas oficialmente urbanas. Considerando a sua vivência de mais de 30 anos na região, é possível citar exemplos do que seria o desenvolvimento voltado para as cidades da Amazônia?

Caetano: Há um abismo muito grande no acesso a serviços de qualidade, seja de energia, telefonia, transportes ou investimentos em infraestrutura em comparação com as outras regiões do país. A própria Covid-19, por exemplo, escancarou as mazelas amazônicas quando vemos que São Paulo entrou na crise pandêmica com um respirador para 2,4 mil habitantes e Santarém [município no Pará], na cidade onde eu moro, um respirador para cada 20 mil habitantes. O que estamos testemunhando aqui é um processo que vem extraindo riquezas para a parte do Brasil rico, sem que isso se converta em bem-estar para o amazônida. A usina hidrelétrica de Tucuruí [no rio Tocantins], por exemplo, foi inaugurada nos anos 80, mas a população do entorno, além de conviver com os impactos do empreendimento, só foi eletrificada mais de vinte anos depois. Vale reforçar a importância de uma política robusta de bioeconomia também para as cidades. Poderia se pensar na instalação de plantas industriais de baixo carbono, de tecnologia, de biotecnologia, extração de óleos, produção de fitoterápicos, gerando empregos de qualidade, mobilizando universidades, academia, pesquisa. A Zona Franca de Manaus [ZFM] poderia ser um pólo mundial de processamento da biodiversidade, tecnologia de ponta e biotecnologia.

redeGIFE: Mesmo considerando uma tendência de queda, a taxa de analfabetismo na Amazônia ainda preocupa. Segundo a Amazônia Legal em Dados, uma a cada dez pessoas com 15 anos ou mais não sabia ler e escrever em 2019. Qual é a importância de promover a educação formal aliada aos conhecimentos locais para potencializar o protagonismo e ser mais significativa para a região?

Caetano: Enquanto o resto do país está discutindo a qualidade do ensino, aqui na Amazônia ainda estamos na questão do acesso e da universalização, que é um grande desafio, principalmente nas áreas rurais. É grande o êxodo de jovens das comunidades para as cidades em busca da continuação dos estudos ou mesmo de oportunidades de renda. Vemos um ensino que segue padrões curriculares nacionais distantes, muitas vezes, do universo local. Temos a inexistência da cultura indígena dentro do nosso projeto nacional de educação. A questão da cultura precisa ser trabalhada também dentro da escola, até porque, na Amazônia, todo esse conhecimento que é passado do pai para o filho está se perdendo porque os muito jovens não querem mais ouvir os mais antigos, e aí, cada velhinho que se vai, vai junto uma enciclopédia de saberes e conhecimentos. É preciso encontrar oportunidades de fixação dessa juventude na própria comunidade, incluindo oportunidades de emprego e renda, o que pode ser propiciado a partir de projetos pedagógicos regionalizados. Um exemplo interessante são as casas familiares rurais, que trabalham com a pedagogia da alternância, e, ao longo do ensino médio, por exemplo, formam técnicos agrícolas. Iniciativas desse tipo deveriam ser escaladas para a Amazônia inteira na forma de políticas públicas adaptadas que valorizem a cultura local e tradicional e que preparem melhor essa juventude, o que também vai ajudar a reduzir o êxodo rural.

redeGIFE: Devido às dimensões dos estados e municípios da região, há dificuldade na oferta de políticas sociais básicas, o que coloca saúde e educação em situações muito abaixo do ideal. Nesse cenário, qual é o papel das alianças entre governo federal, estadual e municipal?

Caetano: Quando se pensa na Amazônia, o nosso imaginário se remete diretamente para a questão da floresta, o que, de uma certa maneira, ofusca um pouco as mazelas sociais da região. Quando falamos de políticas básicas, a própria Constituição Brasileira aponta que é competência dos entes governamentais mais próximos, principalmente dos municípios, oferecer saúde básica, atenção primária e educação. Entretanto, os municípios da Amazônia têm tamanho de países. Altamira é maior que a Grécia. Itaituba equivale a duas Bélgicas. A dificuldade é ainda maior, pois trata-se de uma população totalmente dispersa nesses territórios gigantescos. E, ao mesmo tempo, os mecanismos de arrecadação municipal foram desenhados para um contexto de cidades do sudeste, e não para um contexto amazônico, onde o custo logístico é muito mais alto do que em qualquer região do país. Então, por mais que o secretário municipal de saúde ou de educação seja extremamente competente, a conta jamais vai fechar se não tiver estratégias diferenciadas e políticas de alianças como a soma de esforços entre setores público, privado e organizações da sociedade civil para que essas políticas básicas e essenciais possam minimamente chegar para essas populações rurais, uma vez que um cidadão que vive em uma comunidade em uma área remota tem o mesmo direito daquele que vive na cidade.

Campanha #ComSaudeeAlegriaSemCorona tem firmado parcerias com poder público para atender populações de áreas isoladas da floresta, possibilitando acesso à saúde. Na foto, Secretário Regional do Governo do Pará – Henderson Pinto e Caetano Scannavino, coordenador do PSA.

redeGIFE: Como você enxerga a potencialidade de outras alianças fora do âmbito público, como com academia, investimento social privado e sociedade civil, essa última tão diminuída e atacada pelo governo federal?

Caetano: A Amazônia tem um potencial gigantesco para qualquer setor. Para as universidades e academia, por exemplo, está sendo descoberta uma nova espécie a cada dois dias nos últimos anos. No âmbito das empresas, existe todo o potencial de bioeconomia pouquíssimo aproveitado até então. Uma empresa como a Natura, por exemplo, pode vir a ser líder mundial em economia baseada no conhecimento da natureza. E as populações tradicionais podem ser societárias desses empreendimentos. Para que tudo isso aconteça, precisamos de estratégias, políticas e visão nessa direção. Por fim, no campo das organizações não governamentais, existe todo esse trabalho de controle social, vigilância, denúncia de ilícitos. Pode parecer um trabalho de formiguinha, mas é fundamental, ainda mais em uma região como a Amazônia, com toda a cultura do ilegalismo, o que afugenta até os investidores responsáveis. Esse olhar vigilante das OSCs tem que continuar para podermos evidenciar as boas práticas e quem está fazendo a coisa certa. O que não podemos aceitar é essa inversão de valores, onde quem denuncia o ilícito é acusado de botar fogo na floresta e quem comete o ilícito é considerado cidadão do bem porque está movimentando a economia local. Outra contribuição do terceiro setor é a capacidade de desenvolver projetos pilotos, sejam tecnologias sociais de saúde e educação, sejam empreendimentos na área de cadeias produtivas, e, a partir dessas práticas, gerar projetos que possam ser escalados. Também acho fundamental que possamos promover diálogos inter e multisetoriais. Não são as OSCs sozinhas, ou somente os governos ou empresas que vão resolver os desafios gigantescos que nós temos em uma região como a Amazônia.

Caetano Scannavino, coordenador do Projeto Saúde e Alegria em diálogo com outras entidades através de lives e reuniões online em tempos de pandemia.

redeGIFE: Quais são alguns exemplos de iniciativas que tiveram início no âmbito da sociedade civil e conseguiram influenciar positivamente a população e tornar-se política pública?

Caetano: O próprio Projeto Saúde e Alegria é um exemplo. O nosso modelo de saúde básica, a partir do barco hospital Abaré, virou política pública, e hoje tem mais de 60 embarcações de atendimento espalhadas pela Amazônia e pela região do pantanal, fruto dessa experiência que nós semeamos no Tapajós, construída em parceria com as representações comunitárias e com as prefeituras locais. Cabem às organizações da sociedade civil se somarem ao Estado, não substituí-lo. Mas, de certa forma, o terceiro setor tem muito mais agilidade para poder construir e desenvolver tecnologias sociais de baixo custo e alto impacto, tecnologias de ponta na ponta, que podem ser referências, modelos, exemplos a serem escalados, disseminados e replicados pelas políticas públicas. O que não faz sentido são governantes fecharem os olhos para essas soluções por questões ideológicas. Assim não teremos nem saúde e nem alegria.

Barco Hospital Abaré em atuação na Amazônia virou política pública e inspiração para sistemas de saúde fluvial. Foto: PSA.

Reportagem original aqui

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